quinta-feira, 28 de maio de 2015

Desafio I - "Há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida."

Esperou por ti horas inúteis, esperou por ti esperanças inúteis. Porque ela estava lá, fielmente, à tua espera no porto enquanto tu prosseguias com a tua vida sem te recordares de uma antiga promessa, sem pensares que algures alguém te esperava. E, com o passar do tempo, ela esperava-te para poder esperar alguma coisa, para se ocupar; já nem a acalentava a esperança completamente moribunda, presa à vida numa humilhação de saber se a próxima respiração será, finalmente, a última. Nem a sensação da frustração de saber que está a fazer algo ridículo, absurdo, patético, humilhante, degradante a fustigavam. Estava lá, à tua espera, esperando um milagre que sabia conscientemente que não ia acontecer.
Fitava o rio com um desinteresse descomunal, fitava o rio que a costumava consolar como se fosse uma ferramenta comum, um objecto entre tantos outros. As boas memórias – de quando lá estiveste, do teu riso, o teu rosto, a tua voz, o rio, as cores alegres da Primavera –  e as cruéis – o último adeus, a esperança dela a morrer como um fio de água que escorre, a certeza da solidão, o teu sorriso e o teu rosto – já não a incomodavam. Talvez as palavras tenham mesmo perdido todo o seu valor e, com essa perda, tudo o que elas querem dizer de nada vale. Olhava o porto, na sua espera conscientemente falhada, como se fosse um filme que, aborrecidamente, via numa tarde de Inverno chuvosa. Já nem a solidão a torturava porque já nem como fantasma ela servia.
Mas, por alguma razão, quando chegou a casa procurou, cegamente, a estante. Como um moribundo avisado de que o seu destino está para muito breve, passou o dedo magro por todos os livros até encontrar o que procurava. Foi o teu livro de poemas preferido, o que mantinhas sempre contigo mas que, por qualquer infeliz acidente, lá o deixaste. E que, fielmente, ela guardou para um dia te poder devolver. O pó do livro que sacudiu eram as cinzas da esperança que já definhavam, provavelmente, compraste outro, não precisavas de um livro cheio de pó e de esperanças inúteis. Abriu o livro que já não querias na página que tinhas marcado, o teu poema preferido:

“um dia houve/que nunca mais avistei cidades crepusculares/ e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta/ inclino-me de novo para o pano deste século /recomeço a bordar ou a dormir/ tanto faz /sempre tive dúvidas que alguma vez me visitasse a felicidade.”

E, então, chorou a sua última lágrimas. Finalmente alguém lhe fazia companhia depois dos sonhos falhados, das esperanças fracassadas, do amor quebrado, da Primavera que era apenas um Outono mais agradável, do Verão que não fazia esquecer o Inverno austero, da vida que era efémera, da solidão que esmagava, da beleza do rio que ela já não via, depois de uma vida esfarrapada chorou.

E, então, chorou a sua lágrima na companhia do poema.


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